domingo, outubro 04, 2009

Pé na lama

Se eu fosse poeta iria derramar adjetivos funestos para relembrar a cena, mas isso me não traria nada além dos clichés. Clichés indigestos e insolúveis num mundo cansado. Não me sentia mais a vontade naquele local. Essa era a única verdade naquele instante. Tudo se passara diante dos meus olhos. Isso mesmo, diante desses meus pobres olhos amarelos. Amarelados seria mais preciso. Amarelados como os copos de uísque que vinha tomando desde o ocorrido. Não estavam mais escorrendo pelas minhas bochechas enrugadas como antes. Agora apenas apresentavam aquelas pequenas bolhas azúis que apareceram no dia em que mergulhei no rio de platina. Enfim, os clichés sempre me agradaram, mas não os quero mais lembrar nos tempos de hoje. Tantas opções, tantos fatos. Quais nunca seriam repetidos? Quais palavras nunca foram ditas, diria aquele veado metido a poeta pós moderno. O pior é que ele tinha razão e não somente nessa frase tola. Tolo, aliás, tinha sido aquele palerma, que Deus o tenha. Porque estava justamente me pedindo um cigarro, aquele pobre diabo? Aliás, repetindo um aliás - adoro essa advérbio- mais uma vez, seria mais honroso assumir que nada havia se passado diante dos meus olhos amarelados. Seria mais honroso assumir as decisões que eu havia tomado no último mês sem tentar culpar terceiros por elas. Seria mais honroso assumir o engano, se é que fora realmente um engano, mas isso não vem ao caso. Seria... Seria... O que seria daquele pobre diabo agora? Seu corpo provavelmente ainda estava quente, sendo levado pelos amigos e lavado pelas lágrimas de uma mulher loira, gorducha e de cabelos cacheados. Lágrimas de raiva. Lagrimas de dor. Lágrimas na chuva. Que chuva! Meus sapatos enlamaçados ainda estavam nos meus pés sujando parte da cama. Não me importo. A caminhada na terra tinha sido cansativa, mas os últimos trinta minutos sob aquela tempestade tinham me refeito. Não posso dizer o mesmo desse sapato enlamaçado ou do rosto do dono da hospedaria deformado pelo chumbo quente. Mas não me culpo. Ele devia estar num dia ruim mesmo para reclamar daquele jeito só porque eu estava derretendo as botas sobre o tapete de merda que sua bisavó havia tecido. A velha já tinha morrido mesmo, que Deus a tenha. Agora foi ele. O mais difícil de tudo vai ser dormir nesse quarto fedendo a lama misturada com sangue. Ainda bem que não precisarei mais do banheiro até amanhã, pois detesto dividir a banheira com defuntos. Não por estarem mortos e frios, mas porque o sangue talhado gruda em baixo da unha dos dedos dos pés e é muito difícil de tirar sem usar aquela escovinha que o velho Chico me deu. Saudades do velho Chico. Será que ainda está naquele fim de mundo? Ele era feliz fodendo as putas daquele lugar... Os forasteiros que o digam. Bela estratégia se fingir de bêbado... Quantos otários caíram na conversa... O cara é um gênio. Só mesmo ele para falar aquela frase. Apesar de que eu ainda acho que veio do pai da Zuleica. Frase boa. O Chico não ia falar isso. Não tinha sensibilidade para notar que o mundo perdeu a inocência. Sensibilidade ele teve foi pros três tiros no olho direito do sogro. No fim valeu a pena e hoje niguém mais põe em dúvida a autoria da frase. Cabra macho. Libertário, libertino, como devia ser todo homem de bem nesse mundo, qualquer pessoa que se preze e queira notoriedade e respeito, como seu falecido sogro - que Deus o tenha. Sempre transgredindo a ordem. Não sou como ele. Nunca quero ser e nunca vou ser, apesar de admirar. Confesso, sinto inveja. Uma inveja boa, sincera, se é que isso é possível. Possível deve ser. Minha madrinha falava que tudo era possível se eu realmente quisesse - que Deus a tenha. Eu sempre quis um autorama. Hoje estou aqui com esses pés enlamaçados e ainda por cima sem a escovinha. Acho que foi fácil chegar e fazer. As consequências que vêm depois é que são difícies, cruéis. Não deviam haver. Eu não tive escolha, não sou responsável pelo que acontece. Quem mandou ele me pedir a merda do cigarro. Vou parar de fumar. Não quero lembrar. A única coisa que me lembro é que o autorama, eu nunca tive. Ele, eu já não sei.

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