domingo, dezembro 14, 2008

Percepção alterada

Ar fresco. É controverso, incoerente, mas era o que eu precisava naquele momento. Sentia minha mão ainda trêmula e ávida por tocar a textura macia do papel. Não tive escolha. Tenho que me convencer disso mesmo sabendo que não era a verdade. Sempre temos escolhas. Sempre podemos decidir. Sem fogo, olhei para aquela senhora que estava ali, sentada. Ainda não tinha recuperado minha habilidade para proferir qualquer sinal sonoro. Ela me pareceu extremamente familiar, apesar de eu não ter sido capaz de distinguir suas feições. A troca de olhares foi suficiente para ela. Rapidamente estendeu a mão já com a chama que eu queria. Não agradeci. Mesmo não querendo, eu não podia.

Uma mão se aquecia no bolso e a outra se prendia ao filtro do cigarro. A fumaça agora serpenteava suave pelo ar límpido daquela noite. O inconveniente era o cheiro. Eu deveria saber. Minha mão não se livrara tão ilesa quanto pensei. Era inevitável. Ao aproximar a mão do rosto em cada tragada, mesmo que rápida, o odor característico me remetia àquele momento. Em seguida, para me confortar, o sabor cremoso do tabaco invadia meus pensamentos. Precisava me livrar deles. Olhava o céu entre os prédios, me concentrando para esquecer.

O vento gelado surrava minha pele. Não era normal para o mês de Dezembro sob o Trópico de Capricórnio. Minha mão esquerda não saía de dentro do bolso morno. O casaco surrado era de estimação. Meu pai estava vestindo quando entraram lá na fazenda e, segundo ele, trouxe sorte. Nunca acreditei muito em sorte, mas fato é que nunca foram muito comuns as visitas de João, o matador amigo da família. Talvez no ponto de vista do capataz o casaco tenha trazido azar. Mas é assim mesmo, regra da vida: uns com tanto, outros com tão pouco. Frase dita por ele mesmo enquanto o resto do seu sangue vazava pelo ralo da cozinha. Quem sou eu pra desdizer defunto. Ainda mais defunto de matador. Lembro que ele morreu com um sorriso no rosto por ter salvado a pele do velho. Tudo bem que João nunca soube da gravidez da filha do coronel, mas isso é outra história. Meu pai, aliás, não foi testemunha da cena. Demoramos quase 3 horas para encontrá-lo tremendo e rezando, agachado no fundo da caixa de esgoto. Talvez seja por isso que esse casaco ainda tenha esse cheiro de merda. Memórias a parte, sempre gostei do ar fresco, desde a infância, apesar de não me lembrar muito dela. Principalmente nas noites frias como aquela o ar gelado faz tudo parar. Tudo endurece, exceto o sangue que corre mais fluido. Quando o ar está frio, as estrelas ficam mais nítidas, mais brilhantes. Naquele momento estavam tão brilhantes que mesmo ao fechar os olhos para pensar no que havia se passado elas continuavam marcando a minha retina. Já não sabia ao certo se eram realmente as estrelas ou se era ainda aquele momento fatídico que insistia em se manter vivo em meus olhos. Tudo que sei é que as marcas na retina ainda me acompanhariam por muitos anos. Entre os telhados, esgueirava minha visão a procura de vestígios de lua. Seu branco pálido escorria pelo negro do céu, mas não chegava a se derramar na minha pupila. Talvez fosse o que eu precisava para poder apagar tudo com um clarão, com a famosa cegueira branca que assolava o país. Mas de nada adiantava. Só haviam se passado alguns minutos e o relógio ainda insistia em não girar. Os minutos seguintes sempre são assim. Pena que só me dei conta disso muitos anos mais tarde, no dia em que tive que me deparar com o gordinho da Farani. Minha ansiedade aumentava, principalmente quando percebi que aquele era o último cigarro do meu maço. Naquela vizinhança decrépita não seria simples encontrar algum vendedor de outro pacote de felicidade. Daquela vez eu não poderia simplesmente pagar para apaziguar minha tensão, transformando-na em vapores fúteis para se dissiparem na atmosfera.

Apesar de não esperar que ocorresse tão prontamente, não cheguei a me surpreender com o tapa no ombro. Era inevitável. Mesmo que tivesse me surpreendido, negaria. Não pega bem. Mas o inegável é que nessas ocasiões o tempo, que já fluía lento, parece parar. Uma profusão de impulsos passaram pelo meu sistema nervoso periférico. Meus pelos se arrepiaram. Respiração se alterou. Temperatura corporal aumentou, me fazendo sentir um calafrio. Dava pra sentir a adrenalina viscosa se lançar por minhas artérias. Como é bom se sentir vivo. Acho que esse é o meu vício. Com o hormônio atuando eu era Deus. Percepção alterada. Foi fácil escutar a respiração do meu interlocutor. Dei mais uma tragada e me virei sem tirar o cigarro da boca, dissimulando as proporções que o evento assumira em minha mente. O sujeito estava com um casaco preto, ou alguma cor escura. Não me perguntem sobre cabelo, olhos, cor da pele ou outro traço que não seu bigode amarelado. Melhor assim. A nicotina estava entranhada nos pelos da sua boca e dada a posição e intensidade da mancha não foi difícil deduzir que o sujeito era canhoto, apesar de ter me abordado com a mão direita. A luva grossa que cobria sua mão esquerda quase não aparecia graças à manga casaco, longa demais. O que ele empunhava? Impossível saber. Ele falou qualquer coisa. Não me preocupei em tentar entender. Para ser sincero, já não importava. Eu só conseguia perceber os eventos que queria. Não tirei a mão de dentro do bolso, Percepção alterada, sem dúvidas. Brilho forte, como três relâmpagos seguidos, secos. Silêncio profundo.

Procurei conforto nos olhos da senhora do isqueiro, mas tudo que eu conseguia ver era o céu estrelado. Fiquei assim por um tempo. Enfim consegui fazer uma respiração profunda, que veio com muita fumaça. O cigarro ainda estava entre meus lábios, ligeramente amassado, mas aceso. Sempre. Sentia um calor irradiando. Algo asqueroso escorria por cima de mim. Comecei a sentir os rostos se aproximarem num círculo em volta do circo. As feições estavam paralizadas. Enfim reconheci minha única amiga. Íntima, apesar de desconhecida. A senhora estava pálida. Seu isqueiro, no chão. Cuspi o cigarro. Puxei o ar e fiz força para me desvencilhar daquele corpo caído por cima de mim. Sentei-me. Avaliei o estrago no meu casaco. Dessa vez não teria como remendar novamente o bolso. Bati a terra e me levantei. Vi o maço ainda cheio no chão. Um cigarro estava para fora, provavelmente para que eu acendesse. Consegui demonstrar tranquilidade quando abaixei-me para pegá-lo aos pés do homem de bigode que ainda estava de bruços. Aproximei-me da senhora. Abaixei-me novamente, dessa vez para pegar o isqueiro. Era amarelo, desses baratos que se compra em qualquer banca de jornal ou em botequins de terceira categoria. Devolvi em suas mãos sem fitá-la diretamente nos olhos. Naquela época eu ainda guardava esses traços de pudor. Somente nessa hora ela notou que eu tremia. Sem querer ela tornara-se minha cúmplice. Dessa vez não acendi, mas agradeci. Avancei pelas sombras mesmo sabendo do clichê. Não olhei para trás.

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1 Comments:

Blogger André Aires said...

Plac, Plac, Plac.

Que medo!!!!!

Você anda se drogando, primão?

Muito bom. Um dos melhores senão o melhor.

6:30 PM  

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