domingo, janeiro 21, 2007

Heróis da resistência

O chão de paralelepípedo indicava algo diferente. Para iniciar, uma amizade fraterna com o flanela: "Pode ficar tranquilo patrão, porque quem leva rádio não é flanela não. É nêgo que fica de vacilação! Nós sempre pega, mas às vezes é inevitável."

Depois de mostrar os fios que saíam do painel violado eu consegui um desconto de 2 reais. Uma cerveja!

Se tratando do local inóspito que eu estava, o preço era justo. Nem ele conseguiria alguém para pagar mais nem eu conseguiria parar em um lugar melhor por menos.

Apressei meus passos. A sensação de insegurança me preenchia, talvez pelos últimos acontecimentos relacionados à minha "viatura".

Olhava em volta tentando me convencer que o local era melhor do que eu imaginava. Afinal, a Glória não é uma das vizinhanças mais bucólicas da noite carioca. Na beira da praça, por exemplo, os donzelos ganham a vida, o que por si só já torna a ida ao local uma aventura estranha.

Mas após virar a rua a esquerda, conforeme a indicação do cafetão dos flanelas, pude notar um ar diferente. Aquelas figuras que se encontram facilmente na Lapa ou no Cine Estação rodeavam o local. Intelectuais (ou pseudo intelectuais, vai saber) vestidos com blusas do Che ocupavam as calçadas escuras e fedorentas. Alguns ratos perambulavam felizes pelos cantos, entre os poucos carros estacionados, disputando epaço com os bêbados de plantão.

A multidão aumentava. Estava até mesmo difícil caminhar sobre o calçamento molhadas com a lama mal cheirosa composta de cerveja e urina. Meus pés afundavam frequentemente em armadilhas entre as pedras soltas. Mas ao olhar para a direita pude sentir um ar diferente. Ar de gente se divertindo, independentemente de qualquer outra coisa.

A placa não pretedia ser despretenciosa:
"CANTO DO RATO - Resistência Cultural: Samba, choro, cineclube, teatro e poesia."

O local estava lotado. Gente transbordando pelo ladrão. E cerveja também.

Não sei bem como, mas avistei meu primo no meio da multidão. Deve ter sido coisa de sangue.

Não pude deixar de notar o ar tenso nos rostos de seus amigos:
"Eu sou advogada! Existe uma lei para isso!"
"A madame vai me desculpar, mas eu não conheco lei nenhuma..."
"Mas eu conheco, e sei que é direito dele!!!"
"Ah madame... essa conversa não vai levar a nada... Continuo sem conhecer. E tem mais: se eu der mole, vai vir neguinho pra falar na minha orelha... Como vou fazer pra explicar pra patrôa amanhã? Pra mim se a senhora é advogada, juíza, deputada ou irmã do Papa, dá no mesmo. Só sei que assim não pode..."

Muitos filinhos do papai indignados... Alguns prontos a chamar o comitê de direitos humanos, mas os argumentos do rapaz eram insolúveis:
"Sabe como é que é madame, o único armado aqui sou eu. Não tem nada a ver eu ficar discutindo e recebendo tapa na orelha. Por mim tava bom do jeito que ele tá, mas sabe como é... Depois neguinho fica nervoso, começa a me empurrar e eu vou ter que acabar com a festa de todo mundo... Isso eu não quero..."

O semblante do segurança não se abalava, ao contrário dos filinhos de papai que se contraposocionavam à ele. Para ele, aquilo tudo era um grande aborrecimento. Para os meninos, uma grande diversão. Uma grande auto afirmação: Derramar um punhado de frases de efeito em cima do negão, tentando deixar clara uma suposta superioridade cultural. Mas a vida do segurança já tinha ensinado lições com as quais os playboys não podiam imaginar.

A principal oposição ao segurança era uma menina loira, provavelmente interessada no cara sem camisa. Bem cuidada, pele lisa, cabelos tratados, decote sensual atraindo olhares suspirantes. Usava todas as armas para desqualificar o rapaz. Charme e argumentos prontos que ela deve ter visto em algum filme.

Eu ainda não tinha entendido o que se passava. Perguntava em vão. O cara sem camisa contra argumentava junto com a loira. Minha cabeça falava para eu deixar tudo pra lá e ia pegar uma cerveja. Mas a minha curiosidade não me permitia tal luxo.

Sei que a conversa estava arrastada. Muitos dos amigos do cara sem camisa cercavam o segurança e ele mantia a mesma calma. A arma na cintura trazia tranquilidade. Mas eu sabia que aquilo tudo tinha um limite.

Nessa hora que o negão resolveu por a mão na pochete. Os rostos mudaram, se fecharam. A loira, que estava tentando esbanjar segurança, foi a primeira a falar: "Deixa disso cara! Tira a mão daí!". Os amigos dela comecaram a se preocupar e até se afastaram da roda. A coragem vai toda embora nessas horas. O rapaz sem blusa se encolheu. O clima ficou tenso em todos, menos no segurança.

Ele não era muito mais velho do que eu, mas com certeza havia aprendido muito na vida. Vida sofrida, onde sua forma de encarar as coisas foi crucial para seu sucesso. Provavelmente habitante de um gueto, deve ter lutado muito corajosamente para não se render aos doces sabores que a muitos iludem. Para escapar da média, deve ter sido muito inteligente. Fato que mostrou-se inegável com os acontecimentos.

Apesar de toda a reação indignada dos filinhos de papai, o rapaz continou com sua trajetória. Sua mão caminhou graceosamente até a pochete cheia. O revolver e suas balas, entretanto, não foram exibidos com o abrir do zipper. Em vez disso, sua mão negra puxou um tecido branco. O tecido foi se desenrolando de dentro da pochete lentamente. Os olhos da platéia observavam curiosamente os acontecimentos.

O tecido branco começou a tomar forma. Nem mesmo a loira atuante se atrevia a falar. A certeza que os cartuchos do 38 seriam o argumento final da conversa a tinham deixado muda. Mas após poucos instantes um pouquinho da sabedoria daquele sobrevivente estariam se mostrando. A blusa branca não tinha mangas, mas era suficiente para solucionar a discussão. Discussão banal, mas que jamais poderia ser vencida por um mero segurança que nem leis conhecia.

Mesmo sem ser juiz de direito ou homem de reconhecimento público o rapaz negro puxou a bandeira branca de sua pochete. Sua blusa branca permitiria que aquele playboy continuasse a aproveitar a música, sem despertar a irritação de seus patrões. Provavelmente, para o segurança, não fazia a menor diferença estar com ou sem camisa. Mas ele estava seguindo orientações dos que mantinham sua subexistência. Mesmo tendo sido humilhado e mal tratado (afinal, ele não sabia quais leis regiam o direito de permanecer sem camisa na rua) ele não se importou. Procurou apenas solucionar o problema.

Fez isso com uma elegância indescritível. Fez isso com uma dignidade muito maior do que qualquer um que estivesse ali curtindo o samba e tomando cerveja.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Clap,clap,clap!!!!Bravo. Brasvíssimo. Esplêndido.
Ainda bem que você resolveu parar por aí. PQ depois, não teve tantas histórias bonitas para guargarmos. (rs...)

11:40 AM  
Blogger Saulera said...

kkkkkkk
O resto da história tá publicada logo abaixo.... srsrrsrs

12:06 PM  

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